‘A desindustrialização foi prematura no Brasil’, diz economista da Fiesp

‘A desindustrialização foi prematura no Brasil’, diz economista da Fiesp

“O Brasil tem uma vantagem e um papel singular no chamado powershoring. Poucos países apresentam essa biodiversidade e matriz energética extremamente limpa, ao mesmo tempo que têm capacidade de articulação comercial com várias nações”

Na corrida global por um modelo de desenvolvimento mais sustentável, o Brasil aparece em posição singular para atrair investimentos, afirma o economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Igor Rocha. “Poucos países apresentam essa biodiversidade e matriz energética limpa, ao mesmo tempo que têm capacidade de articulação comercial com diversas nações.”

No entanto, para capitalizar as novas potencialidades, o País tem de enfrentar desafios antigos, como a infraestrutura deficitária e os juros elevados. Também critica o sistema tributário, que onera a indústria de maneira desproporcional e faz o setor indiretamente “subsidiar” outros segmentos.

O economista vê méritos no programa Nova Indústria Brasil, que prevê R$ 300 bilhões em subsídios e financiamento até 2026. Mas avalia que o pacote é insuficiente para lidar com as distorções vigentes. Para ele, o governo deve avançar em políticas industriais que fomentem as áreas com mais oportunidades, entre elas a produção de hidrogênio verde e energia eólica offshore. Confira trechos da entrevista:

Qual a sua avaliação sobre o Nova Indústria Brasil?

É um programa importante, porque coloca a indústria de transformação como pilar do desenvolvimento econômico. Esse é um setor que, por muito tempo, ficou de lado e o Brasil pagou o preço por isso, com uma condição de baixo crescimento. Estivemos na armadilha da renda média e não conseguimos fazer o salto para o rol de países de renda alta. Tivemos uma desindustrialização muito forte exatamente por não ter a visão sistêmica e articulada de planejamento quanto ao papel do setor industrial. O programa está na fase de desenho das metas, às quais estamos aguardando. Mais importante que as metas será o acompanhamento desse plano ao longo dos anos.

O programa é suficiente para melhorar a produtividade, um dos grandes desafios do País?

O plano é uma condição necessária, porém não suficiente. Há um ambiente macroeconômico absurdamente desajustado, sobretudo na questão tributária e de juros para a indústria. A indústria tem de pagar a maior carga tributária da economia quando comparado com os outros setores. Isso ficou muito claro agora com a reforma tributária: diversos setores tiveram isenções e tratamentos diferenciais bastante generosos e a indústria não teve isso. Não à toa esses setores têm maior dinamismo, porque esse incentivo os ajuda a ter ganho de produtividade e crescimento. Quando a indústria tem de pagar essa meia-entrada alheia, temos um ambiente bastante adverso. Isso não acontece somente pela questão tributária. A reforma tributária tem um grande ponto forte que é a transparência. Agora,

a sociedade vai saber quem paga muito, quem paga pouco e quem nada paga. Isso será muito bom para o desenho das políticas públicas.

O BC reduziu o ritmo de corte de juros. Como isso afeta a indústria?

A indústria não tem um Plano Safra, uma LCI (Letra de Crédito Imobiliário), uma LCA (Letra de Crédito de Agronegócio), uma debênture de infraestrutura, uma debênture incentivada. Não tem nenhuma ferramenta de arrefecimento dos juros altos estruturais do Brasil. A tônica da vez é a isonomia. Por que não podemos todos pagar a mesma carga tributária, o mesmo custo do crédito? Se não for assim, e a indústria sempre tiver de subsidiar indiretamente outros setores, você começa a fomentar uma série de distorções na economia. Isso tira muita eficiência do sistema econômico. Por exemplo, nosso estoque de capital é bastante obsoleto. São máquinas operando com 14, 15 anos. Quase 40% das máquinas em uso no Brasil já passaram do tempo de recomendação de uso pelo fabricante. Dado que o custo é muito alto, não ocorre essa renovação. Isso impacta na produtividade do trabalhador. Vemos uma defasagem brutal de tecnologia devido à dificuldade de acesso ao capital. Com isso, a produtividade também não aumenta. Essas questões precisam ser endereçadas na política pública – digo até na política estrutural macroeconômica – para reduzir as diferenças entre os segmentos, entre diferentes rendas e regiões, que geram uma enorme perda de eficiência no sistema econômico.

Quais outros desafios emergem para a indústria? Outra questão que precisa ser endereçada é a da infraestrutura, que ainda é muito deficitária, o que tira competitividade para inserção em novos mercados. Os investimentos caíram de maneira muito forte desde 2015. Parece que estão retomando agora. O investimento público precisa caminhar de maneira conjunta com o privado e a infraestrutura é um exemplo bastante claro disso. Tem também a questão das tarifas de importação – seria importante trabalharmos em um modelo de escalada tributária, ou seja, associar as tarifas à agregação de valor. O que se tem hoje na economia brasileira é um desincentivo à agregação de valor, porque, se quiser agregar valor, você paga mais juros, tem disponibilidade relativa de crédito menor, paga mais imposto e mais tarifa de importação. É preciso ter uma estrutura de incentivos adequada para agregar valor.

Como esse cenário explica a desindustrialização que o Brasil tem enfrentado?

Muitos dos setores que o Brasil tem hoje e podem ser aproveitados foram constituídos de políticas públicas bem desenhadas e que geram oportunidades para o setor industrial. A desindustrialização do Brasil foi prematura. À medida que os países vão crescendo e se tornando países de renda média, é natural que a indústria perca a participação e passe a ter um movimento muito mais simbiótico com o setor de serviço. Assim, o setor industrial de alta tecnologia começa a andar junto com os serviços sofisticados. No Brasil, houve uma regressão tecnológica muito forte, porque a desindustrialização veio antes dessa transição para a renda alta. Isso fez com que a gente perdesse setores de média e alta tecnologia, não desenhássemos esse movimento simbiótico e sinergético com o setor de serviços.

Como a indústria pode aproveitar a transição energética e o potencial brasileiro, sobretudo no hidrogênio verde, para ganhar competitividade?

Por ter uma matriz energética limpa, o Brasil acaba sendo uma potência expressiva para atração do chamado powershoring. Obviamente, também temos o potencial do nearshoring, por sermos uma nação amiga e com comércio com diversas nações. Mas também temos a vantagem do powershoring. E o Brasil tem um papel muito singular nisso. Poucos países apresentam essa biodiversidade e matriz energética extremamente limpa, ao mesmo tempo que têm capacidade de articulação comercial com diversas nações.

Tendo em vista essas transformações, como o governo e o setor privado podem oferecer formação e treinamento aos trabalhadores? Temos feito um trabalho muito positivo na Fiesp, que faz a gestão do Sesi e do Senai. As escolas do Sesi de São Paulo já superaram o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) do Chile. É difícil ver outro setor da economia atuando, como a indústria, de maneira tão articulada e tão incisiva para a melhora da educação do Brasil. A mesma coisa é feita com o Senai, que tem uma atuação bastante expressiva em novas tecnologias, mas também no ensino profissional.

Fonte: O Estado de São Paulo – 25/05/2024
Edição Digital: Especial “Futuro da Industria”