Ações trabalhistas rumam a novo recorde pós-reforma, via serviços

O número de ações na Justiça do Trabalho vem registrando um crescimento contínuo e deve bater este ano um novo recorde desde a aprovação da reforma trabalhista, em 2017. Esse movimento vem sendo puxado por serviços. No ano passado, esse setor respondeu por 26,6% dos processos protocolados e atingiu um recorde, com 556.143 casos novos. Até 2021, era sempre a indústria que liderava esse movimento nos tribunais trabalhistas.
Em todo o ano passado, como já mostrou o Estadão, foram 2,1 milhões de ações, o maior nível desde a reforma. O pico havia sido atingido em 2016, com 2,7 milhões de processos, número que caiu para 1,7 milhão em 2018.
A tendência de crescimento se mantém este ano. De janeiro a junho, foram ajuizadas 1,150 milhão de ações, ante 1,044 milhão no mesmo período de 2024, incluindo todos os setores da economia. As previsões são de que os novos processos cheguem a 2,3 milhões até dezembro.
De acordo com especialistas ouvidos pelo Estadão, o aumento da participação do setor de serviços nesse movimento se explica pela própria dinâmica da economia.
Isenção à ‘baixa renda’ em caso de derrota incentiva ações, dizem especialistas
São atividades que ganharam impulso após a pandemia. Isso movimenta as contratações e as demissões e, consequentemente, as ações na Justiça.
Porém, o que mais explica o aumento da judicialização, segundo os analistas, é uma mudança na reforma trabalhista feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021.
CUSTAS. A reforma havia determinado que, se um empregado perdesse o processo, tinha de pagar as custas de honorários da outra parte e perícias, mesmo se beneficiário da Justiça gratuita – ou seja, de baixa renda. O STF derrubou essa parte relativa à baixa renda em 2021, ao entender que dificultava o acesso à Justiça.
Na avaliação do advogado Paulo Peressin, sócio do escritório Lefosse, a isenção do pagamento para beneficiários da Justiça gratuita tira qualquer risco de um trabalhador entrar com uma ação no Judiciário – e, diz, não é difícil se beneficiar dessa Justiça gratuita. “Hoje, um ex-empregado pode ingressar com uma ação declarando meramente que ele não tem condições de arcar com a despesa do processo e, se a empresa não conseguir demonstrar, provar por A mais B, que ele tem patrimônio, recursos e pode pagar por tudo isso, ele acaba tendo risco zero”, afirma Peressin.
Rogério Neiva, juiz do Trabalho, ex-auxiliar da Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e especialista em conciliação, vê um sistema de incentivo à judicialização. “A lógica é: eu não vou pagar o advogado para entrar com a ação, pois vou dar um pedaço do resultado para ele se eu ganhar”, afirma Neiva.
TST vê relação com o fim da pandemia
Para o Tribunal Superior do Trabalho (TST), a alta do número de ações ocorre porque houve uma queda de processos no período mais crítico da pandemia de covid-19.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) afirma que o aumento do número de ações movidas por trabalhadores tem ocorrido porque houve uma queda de processos no período mais crítico da pandemia de covid-19. “Após esse biênio ( em 2020 e 2021), o número retomou o patamar pré-pandemia”, disse o tribunal ao Estadão, evitando relacionar o aumento com a decisão do STF sobre a Justiça gratuita.
“A Justiça do Trabalho observa os impactos das decisões judiciais que afetam o acesso ao Judiciário. No entanto, não é possível afirmar categoricamente que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na (ADI) 5766, em 2021, teve impacto direto no volume de ações na Justiça do Trabalho”, disse o tribunal.
Ainda para o TST, a judicialização do setor de serviços está relacionada com a participação desse segmento no mercado de trabalho. “Em 2024, por exemplo, o setor teve o maior saldo de empregos ( 915.800, segundo o Caged), e isso se repete neste ano.”
AUTODECLARAÇÃO. Pelas normas do TST em vigor, o trabalhador pode acessar a Justiça gratuita apenas com uma autodeclaração, sem comprovação completa sobre seu patrimônio e renda. Como o Estadão já mostrou, essa situação provoca distorções em processos trabalhistas.
Um estudo coordenado pelo sociólogo José Pastore, professor da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP, baseado em casos reais, mostrou, por exemplo, que um empregado ganhou o benefício mesmo possuindo dois veículos BMW avaliados em R$ 800 mil cada e uma motocicleta Harley-Davidson que custa aproximadamente R$ 240 mil.
Em outro processo, uma pessoa com salário de R$ 30 mil mensais ganhou a Justiça gratuita ao assinar uma simples declaração dizendo que não possuía condições de arcar com os custos do processo.
AUTODECLARAÇÃO. O STF julga uma ação sobre a validade da autodeclaração, mas o julgamento está suspenso após um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.
Na avaliação de Rogério Neiva, juiz do Trabalho, ex-auxiliar da Vice-Presidência do TST e especialista em métodos de conciliação, o resultado pode corrigir a distorção, porém, não altera o quadro de aumento de ações na Justiça do Trabalho, pois não mexeria na isenção de pagamentos para beneficiários da Justiça gratuita que perdem os processos.
“É possível que os impactos dessa decisão recaiam para a pessoa de classe média ou classe média alta que hoje ganha R$ 10 mil, R$ 15 mil por mês, diz que é pobre e a empresa tem de se desdobrar para provar que ela não é”, diz Rogério Neiva. “Mas, estruturalmente, você não cria a lógica que era a intenção do legislador com a reforma trabalhista, segundo a qual quem litiga sem razão paga o preço.”
Neiva entende ainda que a principal causa para o aumento das ações é a decisão do STF que facilitou o acesso gratuito à Justiça. “A lógica é: eu não vou pagar para entrar com a ação; se eu perder, eu também não pago, e eu não vou pagar o advogado para entrar com a ação, pois vou dar um pedaço do resultado para ele se eu ganhar. É um sistema de incentivo à judicialização”, diz. “Projetando o resultado do ano com base em 2024, a tendência seria de fechar 2025 com cerca de 2,3 milhões de ações ajuizadas.”
RESOLUÇÃO. No ano passado, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, fez um apelo para que a Justiça trabalhista aplique a resolução que prevê que o acordo firmado entre empresa e trabalhador na rescisão do contrato de trabalho não pode ter seus termos questionados no Judiciário, caso já tenha sido homologado na Justiça do Trabalho. •
STF avalia ação sobre a validade da chamada autodeclaração; processo teve pedido de vista.
FONTE: https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo/20250825/textview