Guangzhou, o berço das exportações de brinquedos e roupas no sul da China

Fileiras de edifícios de concreto branco perto do Rio das Pérolas, no sul da China, abrigam um dos setores que mais crescem no mundo. Ali, oficinas estão produzindo roupas baratas exportadas diretamente para residências e pequenas empresas em todo o mundo. Nenhuma tarifa é paga, e nenhuma inspeção alfandegária é realizada.
Os trabalhadores que fabricam esses produtos ganham apenas US$ 5 (cerca de R$ 28) por hora, incluindo horas extras, para jornadas de trabalho que podem durar dez horas ou mais. Eles pagam US$ 130 (R$ 742) por mês para dormir em beliches em quartos minúsculos acima de fábricas repletas de máquinas de costura e montes de tecido.
“É um trabalho árduo”, disse Wu Hua, que costura calças, sete dias por semana, em uma fábrica em Guangzhou, uma vasta metrópole que margeia o Rio das Pérolas.
Os gigantes do comércio eletrônico criaram vínculos estreitos entre os mercados internacionais e trabalhadores como Hua, abalando o varejo e as economias em todo o mundo.
O número de remessas isentas de impostos para os Estados Unidos aumentou mais de dez vezes desde 2016, chegando a 4 milhões de pacotes por dia no ano passado. Remessas semelhantes para a União Europeia aumentaram ainda mais rapidamente, chegando a 12 milhões de pacotes por dia no mesmo período. As remessas isentas de impostos para países em desenvolvimento como a Tailândia e a África do Sul também aumentaram.
Agora, uma reação global está em andamento. O presidente dos EUA, Donald Trump, ordenou a suspensão, em 4 de fevereiro, da entrada livre de impostos, sem inspeção, de pacotes com mercadorias de até US$ 800 (R$ 4,67 mil).
Trump suspendeu temporariamente sua ordem para dar às autoridades tempo para elaborar um plano para lidar com os montes de pacotes que imediatamente começaram a se acumular nos aeroportos para inspeção.
Desde que assumiu o cargo, Trump lançou uma série de ações comerciais, incluindo uma ordem no dia 13 de fevereiro para que seus assessores apresentassem novos níveis de tarifas que levassem em conta uma série de barreiras comerciais. Mas uma suspensão duradoura das remessas isentas de impostos poderia ser uma das medidas de maior alcance. Até o momento, essas remessas têm contornado não apenas suas novas tarifas, incluindo um imposto de 10% sobre todos os produtos da China, mas também muitas outras tarifas que se acumularam ao longo dos anos.
MINIMIS. A ação dos EUA sobre as chamadas remessas de minimis – pacotes de baixo valor que os serviços alfandegários não se preocupam em inspecionar ou calcular tarifas – foi uma entre muitas. No ano passado, a África do Sul impôs tarifas de 45% até mesmo sobre as menores importações de roupas.
A Tailândia encerrou sua isenção de impostos sobre vendas para pacotes importados de baixo valor, embora continue a permitir a entra
da sem tarifas de pacotes de até 1.500 baht tailandeses (R$ 251). E a Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia, propôs este mês o fim do tratamento isento de impostos do bloco de 27 nações para pacotes de até ¤ 150 euros (R$ 890).
Os países citaram diferentes motivos para suas restrições. Trump alegou que, ao contornar as inspeções alfandegárias, os pacotes isentos de impostos se tornaram um canal para a entrada de fentanil e materiais relacionados nos EUA.
A Comissão Europeia citou a necessidade de garantir a segurança dos produtos importados, impedir a falsificação de produtos e evitar a concorrência desleal. A África do Sul e a Tailândia agiram para proteger lojistas locais.
“Temos o dever de garantir que os produtos que entram em nosso mercado sejam seguros e que todos os comerciantes respeitem os direitos dos consumidores”, disse Michael McGrath, comissário europeu.
Esse canto do sul da China, próximo a Hong Kong, tem sido um centro de manufatura de baixo custo para exportação desde a década de 1980, especialmente de vestuário. Mas o aumento do comércio eletrônico em todo o mundo criou uma demanda cada vez maior por essas remessas.
Guangzhou surgiu como o centro global de remessas de minimis. Em muitos quilômetros quadrados da cidade, as roupas de fast fashion são fabricadas em prédios de concreto com oficinas de costura e, às vezes, alojamentos acima deles.
A Shein e a Temu – gigantes chinesas concorrentes do comércio eletrônico que, juntas, detêm pelo menos um terço do setor de minimis – coordenam grande parte de suas cadeias de suprimentos a partir de grandes escritórios em Guangzhou. A Amazon introduziu seu próprio negócio de minimis, a Haul, para remessas da China.
Cerco crescente
Além dos EUA, vários países ou blocos têm levantado barreiras para frear a entrada de bens provenientes da China
O setor de minimis da China não se limita a Guangzhou. Tampouco se limita ao principal pilar do setor, o vestuário.
BRINQUEDOS E CHAPÉUS. Yiwu, cidade a 965 quilômetros a nordeste de Guangzhou, com um vasto mercado atacadista, tornou-se outro centro. Ela coordena as exportações de minimis de brinquedos, chapéus e outros itens pequenos de cidades espalhadas pelo delta do Rio Yangtze.
A Shein, em particular, se apresentou como um novo conceito de negócios, conectando clientes distantes com fábricas prontas para cortar e costurar quase tudo. Colaborando com 5 mil oficinas e pequenas fábricas em toda a China, a abordagem da Shein elimina quase que completamente a necessidade de estoque em lojas, ou mesmo de lojas e equipe de varejo.
“Na Shein, reimaginamos a cadeia de suprimentos ao capacitar milhares de pequenas e médias empresas, dando a elas uma visão completa do que nossos clientes querem e precisam”, diz a empresa em seu site.
Mas os donos de oficinas em Guangzhou reclamam que a Shein é muito exigente.
A oficina de Li Zhi produziu roupas para uma empresa contratada pela Shein há quatro anos, mas o acordo durou apenas um ano. “A Shein exige alta qualidade, mas oferece preços baixos”, disse ela enquanto separava tecidos de renda em uma mesa.
FALTA DE MÃO DE OBRA. Agora, em vez disso, ela vende para atacadistas do mercado interno da China, que lhe oferecem preços mais altos. Mas os negócios continuam difíceis, disse ela, pois a escassez de trabalhadores fez com que o preço de um dia de trabalho chegasse a quase US$ 70 (R$ 400), em comparação com os US$ 48 (R$ 274) de quatro anos atrás.
Atualmente, na China, quase dois terços dos jovens de 18 anos se matriculam em uma faculdade ou universidade, em comparação com 10% em 2000. Isso fez com que poucos
“Temos o dever de garantir que os produtos que entram em nosso mercado sejam seguros e que todos os comerciantes respeitem os direitos dos consumidores”
Michael McGrath
Membro da Comissão Europeia
“É um trabalho árduo”
Wu Hua
Trabalhador que costura calças sete dias por semana, em uma fábrica em Guangzhou, uma vasta metrópole que margeia o Rio das Pérolas
“A Shein exige alta qualidade, mas oferece preços baixos (…). Os negócios estão se deteriorando a cada ano. Há cada vez menos trabalhadores agora, principalmente os nascidos nos anos 70 e 80”
Li Zhi
Dona de uma oficina de costura
“Se não aceitarmos os acordos, não há mais nada a fazer”
Yun Congping
Proprietário de uma loja de costura
jovens chineses estivessem dispostos a trabalhar em fábricas.
“Os negócios estão se deteriorando a cada ano”, disse Li. “Há cada vez menos trabalhadores agora, principalmente os nascidos nos anos 70 e 80.”
Se Trump acabar permanentemente com a regra de minimis, as roupas importadas que agora são isentas de impostos estariam sujeitas a tarifas básicas de 3% a 30%, mais uma tarifa de 7,5% imposta durante seu primeiro mandato, mais uma tarifa de 10% sobre todas as importações da China que o presidente impôs em 4 de fevereiro. Além disso, haveria taxas de processamento alfandegário de US$ 5 a US$ 20 (R$ 28 a R$ 114) por pacote.
A Shein disse que seus fornecedores pagavam a suas equipes o dobro do salário mínimo local. A Temu disse que quase 60% de suas vendas nos Estados Unidos são agora feitas em armazéns americanos com remessas que passam pela alfândega, com tarifas pagas.
ALGODÃO. As vantagens competitivas do setor de exportação de minimis na China vão além de evitar tarifas e contornar as inspeções alfandegárias. Mais de 90% do algodão da China é cultivado em Xinjiang, uma região no extremo noroeste do país.
Muitos governos ocidentais começaram a restringir ou proibir as importações com qualquer conteúdo de Xinjiang após as prisões em massa realizadas pelas agências de segurança da China e as evidências de trabalho forçado entre os grupos étnicos predominantemente muçulmanos da região, principalmente os uigures.
As famílias e as pequenas empresas que compram pacotes de minimis da China têm a responsabilidade legal de garantir que seus pacotes não tenham algodão ou outro conteúdo de Xinjiang. Mas os órgãos reguladores no Ocidente têm relutado em apresentar acusações.
Os grandes varejistas, por outro lado, geralmente cumprem a legislação relacionada a Xinjiang quando importam grandes contêineres de roupas para suas lojas.
Os proprietários de oficinas em Guangzhou disseram que não sabiam onde seus fornecedores de tecidos obtinham o algodão.
Yun Congping, proprietário de uma loja de costura em Guangzhou que abastece o mercado tailandês, disse que ele e outros comerciantes precisavam de exportações.
“Se não aceitarmos os acordos” para fornecer exportações a preços baixos, disse ele, “não há mais nada a fazer.”
FONTE: https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo/20250227/page/54/textview