Mão de obra escassa faz construção investir em capacitação e tecnologia
A falta de mão de obra qualificada, ocorrida há pouco mais de uma década, voltou a atingir o setor de construção civil, que busca entregar no prazo os imóveis lançados nos últimos anos. A escassez de profissionais atinge de serventes e engenheiros a pedreiros, azulejistas e pintores. Empresas disputam profissionais empregados. Para atrair e reter trabalhadores, as construtoras aumentam o gasto com pessoal, custo que em algum momento é repassado ao preço dos imóveis. Outro recurso é o trabalho “por tarefa”. As empresas também investem em treinamento. Cursos de formação incluem mulheres e imigrantes que queiram atuar na área. O uso de novas tecnologias, como estruturas pré-fabricadas, que são apenas montadas nos canteiros de obra e reduzem a necessidade de trabalhadores, tem sido intensificado.
A exemplo do que ocorreu há pouco mais de uma década, a escassez de mão de obra qualificada voltou a assombrar o setor de construção civil, que corre para entregar, no prazo, o grande volume de imóveis lançados nos últimos anos no País. A falta de profissionais atinge todas as funções, do servente de obra ao engenheiro, passando pelo pedreiro, azulejista, pintor e carpinteiro.
No “guerra” para atrair e reter trabalhadores, as construtoras registram aumento da folha de pagamento – que, em algum momento, é repassado para o custo dos imóveis. Neste ano, o dissídio da construção civil no Estado de São Paulo, por exemplo, teve o maior ganho real (acima da inflação) dos últimos 20 anos. O índice, que historicamente tem girado em torno de 0,5%, pulou para 1,27%, segundo o sindicato dos trabalhadores no setor.
Já o Índice Nacional da Construção Civil (INCC), medido pela Fundação Getulio Vargas (FGV), acumula alta de 4% em 12 meses até maio, enquanto o custo da mão de obra subiu quase o dobro (7,51%).
Para atenuar o problema, construtoras, empreiteiras e sindicatos estão investindo em treinamento. Os cursos de formação incluem desde mulheres até imigrantes que queiram entrar nesse mercado de trabalho (mais informações na pág. B2).
Outra frente tem sido ampliar o uso de métodos industriais de construção, como madeira engenheirada, perfis de aço galvanizado (“steel frame”) e construção modular. Essas novas tecnologias reduzem a necessidade de trabalhadores, porque as estruturas pré-fabricadas na indústria são apenas montadas no canteiro de obra.
Segundo David Fratel, membro do Comitê de Tecnologia e Qualidade do Sinduscon-SP, o uso dessas tecnologias de construção aumentou 30% nas obras nos últimos cinco anos. “Aumentar salário não resolve o problema, o que resolve é aumentar a produtividade, reduzindo a dependência da mão de obra.”
Forte em empreendimentos comerciais e de logística na região metropolitana de São Paulo, a construtora Libercon tem recorrido ao “steel frame” e à madeira engenheirada em suas obras. A madeira engenheirada é uma técnica que cola as fibras em alguns sentidos, aumentando a capacidade estrutural da matéria-prima.
Atualmente, a empresa está usando essa técnica nas obras de ampliação do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, em uma área construída de 3.470 metros quadrados. Também na construção de um edifício de sete andares próximo à Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. “A falta de mão de obra está puxando para novas tecnologias, algumas não tão novas, mas que não tinham adesão pelo custo”, diz Hailton Liberatore, sócio-diretor da construtora. “O jogo começa a ficar mais equilibrado.” •
Custo da mão de obra aumentou 7,51% em 12 meses até maio, mostra pesquisa
Embora a dificuldade para contratar trabalhadores qualificados seja um problema generalizado no setor, ele é maior, sobretudo, no segmento de edificações residenciais. Isso porque esse segmento vive um aquecimento de projetos por conta do Minha Casa, Minha Vida e de obras de infraestrutura – aceleradas pelo ano eleitoral –, afirma a economista Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos de construção do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, com base nos resultados da sondagem da construção.
Em maio, 37,8% das companhias consultadas pela pesquisa apontaram a escassez de mão de obra para serviços de acabamento como o principal obstáculo para o avanço dos negócios. “Foi o primeiro lugar disparado, mostrando que há uma questão aí”, diz Ana Maria, que vê ainda pressão a médio prazo na demanda de profissionais para a recuperação de imóveis e infraestrutura atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul.
Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que mede o emprego com carteira assinada, mostram que o saldo líquido de contratações na construção entre janeiro e abril deste ano foi 16% maior ante o mesmo período de 2023.
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo (Sintracon-SP), Antonio de Sousa Ramalho conta que um expediente antigo das empresas de contratar os trabalhadores “por tarefa” aumentou desde o último ano. Nessa modalidade, os operários com registro em carteira que trabalham, em média, 8 horas diárias, com todos os encargos, passam para uma jornada de 14 horas. Eles recebem o adicional de produtividade por fora, sem incidência de FGTS, férias e 13.º salário, por exemplo.
“Com isso, tem carpinteiro que ganha até R$ 22 mil”, diz Ramalho. O valor é quase nove vezes o piso da categoria (R$ 2.513). Na média, considerando todas as funções do setor, ele diz que a contratação por tarefa amplia em quase cinco vezes, de R$ 2,5 mil para R$ 12 mil, o rendimento dos trabalhadores.
“Há uma guerra para tirar mão de obra de outra empresa, do servente ao engenheiro”, diz Felipe Mellazzo, presidente da Associação de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi) de Goiás, cuja capital vive um boom de empreendimentos de alto padrão.
Em parceria com o Ministério Público do Trabalho, federação das indústrias do Estado, Sinduscon e Secovi locais,
‘GUERRA’. Seradieu Belizaire, em obra onde trabalha: alta de rendimentos
a associação treina mais de 2 mil mulheres para as funções de assentadoras de cerâmica, pintoras e rejuntadoras.
Em outra frente, junto com o Senai e Sebrae, o SintraconSP tem formado mensalmente 350 profissionais para construção civil, e, mesmo assim, a oferta se mantém aquém da demanda. Ramalho conta que outra alternativa tem sido recrutar imigrantes, especialmente haitianos e venezuelanos. Nas suas contas, os estrangeiros já representam hoje mais de 10% dos ocupados no setor em São Paulo. “Eles estão tomando o espaço dos migrantes vindos do Nordeste.”
Um desses trabalhadores é o haitiano Seradieu Belizaire, de 48 anos. Com ensino fundamental completo, ele era operador de guindastes na construção civil quando vivia na República Dominicana, antes de se mudar para o Brasil, em 2014. Chegou aqui sozinho, e seu primeiro trabalho foi como cuidador de pessoas com transtorno do espectro autista.
Em 2016, conseguiu se empregar na construção civil como ajudante, por um salário de R$ 1.600. Trabalhando sempre na mesma empresa especializada em reformas, hoje ele ganha quase R$ 3 mil e é uma espécie de “faz-tudo”: é pedreiro, pintor e também assenta cerâmica. Belizaire já conseguiu trazer quase toda família do Haiti para o Brasil, onde ele preside uma igreja evangélica. “Na minha igreja, em Francisco Morato (município na região metropolitana de São Paulo), todos os haitianos trabalham na construção.”
SEM ‘HERDEIROS’.
“Há uma guerra para tirar mão de obra de outra empresa, do servente ao engenheiro” Felipe Mellazzo
Associação de Empresas do Mercado Imobiliário de GO
“Na minha igreja, todos os haitianos trabalham na construção” Seradieu Belizaire
Trabalhador no setor
A grande dificuldade apontada pelos especialistas para oxigenar o mercado de trabalho da construção civil é atrair as novas gerações. São os jovens nascidos a partir de 1995 (a geração Z), e que hoje estão na faixa de 30 anos, diz David Fratel, membro do Comitê de Tecnologia e Qualidade do Sinduscon-SP.
“Filho de pedreiro não que ser pedreiro, ir para obra tomar chuva e sol”, completa Hailton Liberatore, sócio-diretor da construtora Libercon. Ele argumenta que a mão de obra migrou para outros setores, como logística, transporte por aplicativos e entregas. Com isso, não há reposição de trabalhadores no setor.
Pesquisa feita pela Autodoc GDA e o Sinduscon indica o envelhecimento dos trabalhadores da construção civil. Pelo levantamento realizado nas catracas de acesso a obras em 22 Estados brasileiros, a idade média dos operários aumentou de 38 anos, em 2016, para 41 anos em 2024.
FONTE: https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo/20240617/page/21/textview